In Vino Veritas
In Vino Veritas - No vinho está a verdade, afirmavam os antigos romanos. Com isso eles queriam dizer que a embriaguez soltava a língua e fazia a verdade vir à tona, no que eles tinham inteira razão, tanto que foram grandes produtores e apreciadores de vinho. Conheciam também a cerveja, o "vinho da cevada", a que chamavam cervecia, mas não a apreciavam muito. Em todo o mundo mediterrâneo, considerava-se o vinho e o azeite de oliva como o símbolo da civilização, ao passo que a cerveja e a gordura animal seriam o símbolo da barbárie.
Como descendente de gente do mediterrâneo, compartilho a paixão pelo vinho. Mas esta paixão não me foi transmitida por meus progenitores; eu a descobri na idade madura, quase por acaso, com o despertar de uma atração atávica e irresistível, que não sei bem explicar. Tive que viajar para aprender a gostar de vinho. E suprema ironia, a viagem não foi sequer para um país com tradição vinífera, eu estava indo para o extremo oriente. Na verdade, não precisei chegar a meu destino; a revelação deu-se ainda no avião. Explico: pela primeira vez em minha vida, eu viajava pela classe executiva (obviamente a viagem era a serviço e a passagem fora paga pela parte contratante) e tive a chance de provar o vinho de qualidade superior que era servido ali em generosa quantidade. De início, meu paladar obtuso mal notou qualquer diferença em relação aos vinhos de supermercado que eu provava de raro em raro. Mas quanto às sensações que eram produzidas, a diferença era, esta sim, enorme. Experimentei uma vertigem, um bem-estar, um frêmito em minha atividade intelectual aliado a um aguçamento de minha sensibilidade, que me fez por algumas horas achar poético o que era prosaico, e finalmente entendi o que quisera dizer aquele jornalista norte-americano (HL Mencken, creio) que, ao ser questionado sobre por que bebia tanto, respondeu: "bebo para tornar os outros interessantes". Lentamente caí no sono, e acordei no dia seguinte com excelente disposição, mesmo após mais de 24 horas de viagem. Não soube inicialmente explicar o que me sucedera, mas após a terceira viagem, e tendo observado que igual estado de consciência me acometia sempre duas horas após a decolagem, por fim descobri o motivo.
Por sorte, esta terceira viagem a serviço foi para um país europeu, e pude aproveitar para descobrir porque estes europeus preferem um copo de vinho no lugar de uma coca-cola para acompanhar as refeições. Timidamente aventurei-me a escolher um vinho ou outro, mesmo sem ter a menor idéia de quanto tipos e qualidades existiam, e qual seria o apropriado para cada situação. Nunca me esqueci a primeira vez em que entrei em um supermercado qualquer em Zurique e contemplei a imensa estante de vinhos, com centenas de garrafas, oriundas de vários países europeus e com denominações de que eu jamais ouvira falar, e o mais surpreendente de tudo, havia vinhos baratíssimos, na faixa de dois francos suíços, e que nem assim deixavam de ter uma qualidade respeitável. Voltei lá nas viagens seguintes, e os preços se mantinham, assim como os hábitos da população.
Desde então tornei-me um apreciador de vinhos, embora mal esteja começando a entender do assunto. Consumo-o regularmente, mesmo sozinho, ao menos meia garrafa. Acostumei-me ao olhar espantado dos garçons, quando lhes peço uma taça de vinho ao invés de um refrigerante. Interessado que sou em História, procurei levantar a evolução histórica do vinho. Surgiu há mais de sete mil anos atrás, possivelmente na Ásia Menor. Eu compreendo o motivo de tão duradoura paixão. Para uma vida curta, bruta, de lutas, sofrimento e trabalho árduo, o vinho era a única fonte de alívio para os dissabores, a única diversão, a única fonte de encorajamento, e mais do que isso, era o único anticéptico, o único anestésico, o único calmante, o único sonífero, às vezes o único alimento. Servia até para matar a sede, como acontecia nas caravelas que descobriram o Brasil, que carregavam tantos barris de água quanto de vinho. Explica-se: a água apodrecia nos barris de madeira e causava diarréia nos marinheiros, ao passo que o vinho suportava bem melhor a viagem. Era também com o vinagre fervendo que se desinfetava o chão imundo de excrementos do porão dos navios, e se assegurava um mínimo de condições de sobrevivência aos tripulantes. Teria sido descoberto o Brasil, se não fosse o vinho?
Mas por que fui tocar neste assunto? É que vejo este tradicional desapego dos brasileiros pelo vinho como o emblema de um incompreensível rompimento com nossas raízes ibéricas. Gostamos de alardear que o Brasil é a terra da cerveja, a Loura Gelada, como se a cerveja fosse invenção nossa, e não mais uma importação européia. Não é de todo sem motivo este divórcio: os portugueses nos legaram a maior parte de nossa bagagem cultural, mas houve uma coisa que eles não nos legaram - o vinho. Estavam proibidos de fazê-lo. Plantar videiras aqui, assim como plantar oliveiras, era crime de cadeia. Só fomos descobrir o vinho com a chegada dos imigrantes italianos, e só agora nosso produto começa a adquirir certa qualidade, e suprema ironia, o consumo cresce entre os brasileiros, ao mesmo tempo em que diminui na Europa.
Cada vez que saco a rolha de uma garrafa, tenho a sensação de estar promovendo uma reconciliação entre a nossa terra e nossos ancestrais ibéricos, com os quais rompemos por motivo de orgulho tolo e pueril. Então, que garrafa tomamos hoje? In Vino Veritas!
In Vino Veritas - No vinho está a verdade, afirmavam os antigos romanos. Com isso eles queriam dizer que a embriaguez soltava a língua e fazia a verdade vir à tona, no que eles tinham inteira razão, tanto que foram grandes produtores e apreciadores de vinho. Conheciam também a cerveja, o "vinho da cevada", a que chamavam cervecia, mas não a apreciavam muito. Em todo o mundo mediterrâneo, considerava-se o vinho e o azeite de oliva como o símbolo da civilização, ao passo que a cerveja e a gordura animal seriam o símbolo da barbárie.
Como descendente de gente do mediterrâneo, compartilho a paixão pelo vinho. Mas esta paixão não me foi transmitida por meus progenitores; eu a descobri na idade madura, quase por acaso, com o despertar de uma atração atávica e irresistível, que não sei bem explicar. Tive que viajar para aprender a gostar de vinho. E suprema ironia, a viagem não foi sequer para um país com tradição vinífera, eu estava indo para o extremo oriente. Na verdade, não precisei chegar a meu destino; a revelação deu-se ainda no avião. Explico: pela primeira vez em minha vida, eu viajava pela classe executiva (obviamente a viagem era a serviço e a passagem fora paga pela parte contratante) e tive a chance de provar o vinho de qualidade superior que era servido ali em generosa quantidade. De início, meu paladar obtuso mal notou qualquer diferença em relação aos vinhos de supermercado que eu provava de raro em raro. Mas quanto às sensações que eram produzidas, a diferença era, esta sim, enorme. Experimentei uma vertigem, um bem-estar, um frêmito em minha atividade intelectual aliado a um aguçamento de minha sensibilidade, que me fez por algumas horas achar poético o que era prosaico, e finalmente entendi o que quisera dizer aquele jornalista norte-americano (HL Mencken, creio) que, ao ser questionado sobre por que bebia tanto, respondeu: "bebo para tornar os outros interessantes". Lentamente caí no sono, e acordei no dia seguinte com excelente disposição, mesmo após mais de 24 horas de viagem. Não soube inicialmente explicar o que me sucedera, mas após a terceira viagem, e tendo observado que igual estado de consciência me acometia sempre duas horas após a decolagem, por fim descobri o motivo.
Por sorte, esta terceira viagem a serviço foi para um país europeu, e pude aproveitar para descobrir porque estes europeus preferem um copo de vinho no lugar de uma coca-cola para acompanhar as refeições. Timidamente aventurei-me a escolher um vinho ou outro, mesmo sem ter a menor idéia de quanto tipos e qualidades existiam, e qual seria o apropriado para cada situação. Nunca me esqueci a primeira vez em que entrei em um supermercado qualquer em Zurique e contemplei a imensa estante de vinhos, com centenas de garrafas, oriundas de vários países europeus e com denominações de que eu jamais ouvira falar, e o mais surpreendente de tudo, havia vinhos baratíssimos, na faixa de dois francos suíços, e que nem assim deixavam de ter uma qualidade respeitável. Voltei lá nas viagens seguintes, e os preços se mantinham, assim como os hábitos da população.
Desde então tornei-me um apreciador de vinhos, embora mal esteja começando a entender do assunto. Consumo-o regularmente, mesmo sozinho, ao menos meia garrafa. Acostumei-me ao olhar espantado dos garçons, quando lhes peço uma taça de vinho ao invés de um refrigerante. Interessado que sou em História, procurei levantar a evolução histórica do vinho. Surgiu há mais de sete mil anos atrás, possivelmente na Ásia Menor. Eu compreendo o motivo de tão duradoura paixão. Para uma vida curta, bruta, de lutas, sofrimento e trabalho árduo, o vinho era a única fonte de alívio para os dissabores, a única diversão, a única fonte de encorajamento, e mais do que isso, era o único anticéptico, o único anestésico, o único calmante, o único sonífero, às vezes o único alimento. Servia até para matar a sede, como acontecia nas caravelas que descobriram o Brasil, que carregavam tantos barris de água quanto de vinho. Explica-se: a água apodrecia nos barris de madeira e causava diarréia nos marinheiros, ao passo que o vinho suportava bem melhor a viagem. Era também com o vinagre fervendo que se desinfetava o chão imundo de excrementos do porão dos navios, e se assegurava um mínimo de condições de sobrevivência aos tripulantes. Teria sido descoberto o Brasil, se não fosse o vinho?
Mas por que fui tocar neste assunto? É que vejo este tradicional desapego dos brasileiros pelo vinho como o emblema de um incompreensível rompimento com nossas raízes ibéricas. Gostamos de alardear que o Brasil é a terra da cerveja, a Loura Gelada, como se a cerveja fosse invenção nossa, e não mais uma importação européia. Não é de todo sem motivo este divórcio: os portugueses nos legaram a maior parte de nossa bagagem cultural, mas houve uma coisa que eles não nos legaram - o vinho. Estavam proibidos de fazê-lo. Plantar videiras aqui, assim como plantar oliveiras, era crime de cadeia. Só fomos descobrir o vinho com a chegada dos imigrantes italianos, e só agora nosso produto começa a adquirir certa qualidade, e suprema ironia, o consumo cresce entre os brasileiros, ao mesmo tempo em que diminui na Europa.
Cada vez que saco a rolha de uma garrafa, tenho a sensação de estar promovendo uma reconciliação entre a nossa terra e nossos ancestrais ibéricos, com os quais rompemos por motivo de orgulho tolo e pueril. Então, que garrafa tomamos hoje? In Vino Veritas!
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