BOSSA NOVA: 50 ANOS DE AMOR E BELEZA
Sim, sou antiga e mesmo jurássica. Sim, sou daquelas pessoas que gostam de música que fala de amor, sol, céu azul, mar límpido, barquinhos que vão e que vêm, saudade que aperta o peito e dói, beleza da natureza física, ecológica e humana. Sim, tive o privilégio de viver em um Rio tranqüilo e belo, sem balas perdidas, sem crime organizado, sem autoridades incompetentes. Um Rio no qual se podia passear a pé de madrugada sem correr risco de vida e onde sinal vermelho era código para parar o carro até mesmo de noite. E dançar e namorar ao som da bossa nova. Por tudo isso, disponho-me a celebrar bodas de ouro com a Bossa Nova. Ela remonta ao final dos anos 50. Poderíamos situá-la em 58. Os entendidos fazem a conexão das origens da nova fase da música popular brasileira com o lançamento do disco Chega de Saudade, de 78 rotações, com o clássico de Tom e Vinicius de um lado e Bim-bom, de João Gilberto, do outro. Ali, o tímido João Gilberto surpreendeu a todos com a nova batida de violão, resultado de vários anos de experiências musicais. Era o fruto maduro de um processo vivido não só por ele mesmo, mas por toda a turma de músicos e intelectuais que se encontrava nas famosas reuniões em casa de Nara Leão. O Brasil ainda não havia conhecido as dores do golpe militar e o Rio era uma festa de beleza e despreocupação, vivendo seus últimos anos de capital do país. Na Zona Sul do Rio de Janeiro, compositores, instrumentistas e cantores intelectualizados - universitários muitos - amantes do jazz americano e da música erudita, tiveram participação efetiva no seu surgimento, que conseguiu unir a alegria do ritmo brasileiro às sofisticadas harmonias do jazz americano. Foi só João Gilberto lançar o primeiro LP, também chamado Chega de saudade, para que a Bossa Nova ganhasse o país e o mundo, com seu jeitinho, sua batidinha, seu encanto mansinho e envolvente. Eram realmente os “anos dourados”, posteriormente celebrados em novelas de televisão e filmes. O Brasil vivia um período de crescimento econômico que impactava sobre todas as áreas. O presidente JK – também chamado por Juca Chaves de “Presidente Bossa Nova” – liderava o estilo desenvolvimentista de “50 anos em 5”. A literatura brasileira lançava aquele que seria considerado por muitos o maior romance da língua pátria: Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa. Jorge Amado lançava o livro que seria o manifesto da identidade baiana: Gabriela cravo e canela. O Cinema Novo surgia com o filme Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos. E a seleção brasileira de futebol conquistava sua primeira Copa do Mundo, derrotando a Suécia por 5 a 2 em jogo arrasador, onde brilharam as pernas tortas e geniais de Mané Garrincha. Gianfrancesco Guarnieri estreava em São Paulo, no Teatro de Arena, a peça Eles não usam black-tie, posteriormente usada pela ditadura militar para perseguir a classe teatral e intelectual brasileira. E durante vários anos nos deliciamos com esse gênero que era e não era samba, era e não era jazz, era e não era muita coisa. Mas era, certamente e firmemente, a descrição fiel da alma brasileira e carioca. Hoje a Bossa Nova ainda faz sucesso no mundo. Depois dela veio a MPB, com canções mais engajadas politicamente, retratando a situação que o país vivia. E depois veio o rock, o rap, o rave, outros ritmos. Confesso que cada vez que ouço as canções de João Gilberto, Vinicius, Tom; cada vez que escuto a voz de Nara, baixinha e redondinha; cada vez que ouço toda essa beleza, deixo que o peito acompanhe e a imaginação ganhe asas e voe. Por isso agradeço à Bossa Nova, com quem o Brasil celebra bodas de ouro. São 50 anos de um casamento feliz, que foi se transformando ao longo do tempo como todas as uniões bem sucedidas. Mas que nunca esquece suas origens que marcaram um giro na identidade de um povo e de um país. Identidade feita de amor, beleza e sobretudo alegria. Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.
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