TEXTOS DE NIETZSCHE
(Trechos dos livros: "Para além do bem e do mal", "O crepúsculo dos ídolos",
"A gaia ciência", "O anti-Cristo", "Humano, demasiado humano")
Moral nobre e moral escrava -
TEXTOS DE NIETZSCHE
(Trechos dos livros: "Para além do bem e do mal", "O crepúsculo dos ídolos","A gaia ciência", "O anti-Cristo", "Humano, demasiado humano")
Moral nobre e moral escrava - Aqui, Nietzsche traça, com seu estilo direto e irreverente, as características que demarcam os dois tipos de vida, representados pelas duas morais: a nobre (ou dos senhores) e a escrava.
"Numa perambulação pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, que até agora dominaram e continuam dominando na terra, encontrei certos traços que regularmente retornam juntos e ligados entre si: até que finalmente se revelaram dois tipos básicos, e uma diferença fundamental sobressaiu. Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos; acrescento de imediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem também tentativas de mediação entre as duas morais, e, com ainda maior freqüência, confusão das mesmas e incompreensão mútua, por vezes inclusive dura coexistência até mesmo num homem, no interior de uma só alma.
As diferenciações morais de valor se originaram ou dentro de uma espécie dominante, que se tornou agradavelmente cônscia da sua diferença em relação à dominada, ou entre os dominados, os escravos e dependentes de qualquer grau. No primeiro caso, quando os dominantes determinam o conceito de "bom", são os estados de alma elevados e orgulhosos que são considerados distintivos e determinantes da hierarquia. O homem nobre afasta de si os seres nos quais se exprime o contrário desses estados de elevação e orgulho: ele os despreza. Note-se que, nessa primeira espécie de moral, a oposição "bom" e "ruim" significa tanto quanto "nobre" e "desprezível"; a oposição "bom" e "mau" tem outra origem.
Despreza-se o covarde, o medroso, o mesquinho, o que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e, sobretudo, o mentiroso - é crença básica de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso. "Nós , verdadeiros" - assim se denominavam os nobres da Grécia antiga.
É óbvio que as designações morais de valor, em toda parte, foram aplicadas primeiro a homens, e somente depois, de forma derivada, a ações: por isso é um grande equívoco, quando historiadores da moral partem de questões como "por que foi louvada a ação compassiva?". O homem de espécie nobre se sente como aquele que determina valores, ele não tem necessidade de ser abonado, ele julga: "o que me é prejudicial é prejudicial em si", sabe-se como o único que empresta honra às coisas, que cria valores. Tudo o que conhece de si, ele honra: uma semelhante moral é glorificação de si.
Em primeiro plano está a sensação de plenitude, de poder que quer elevada, a consciência de uma riqueza que gostaria de ceder e presentear - também o homem nobre ajuda o infeliz, mas não ou quase não por compaixão, antes por um ímpeto gerado pela abundância de poder.
O homem nobre honra em si o poderoso, e o que tem poder sobre si mesmo, que entende de falar e calar, que com prazer exerce rigor e dureza consigo e venera tudo que seja rigoroso e duro.
"Um coração duro me colocou Wotan no peito", diz uma velha saga escandinava: uma justa expressão poética da alma de um orgulhoso viking. Uma tal espécie de homem se orgulha justamente de não ser feito para a compaixão: daí o herói da saga acrescentar, em tom de aviso, que "quem quando jovem não tem o coração duro, jamais o terá". Os nobres e bravos que assim pensam estão longe da moral que vê o sinal distintivo do que é moral na compaixão, na ação altruísta ou no desintéressement [desinteresse]; a fé em si mesmo, o orgulho de si mesmo, uma radical hostilidade e ironia face à "abnegação" pertencem tão claramente à moral nobre quanto um leve desprezo e cuidado ante as simpatias e o "coração quente".
São os poderosos que entendem de venerar, esta é sua arte, o reino de sua invenção. A profunda reverência pela idade e pela origem - todo o direito se baseia nessa dupla reverência -, a fé e o preconceito em favor dos ancestrais e contra os vindouros são algo típico da moral dos poderosos; e quando, inversamente, os homens das "idéias modernas" crêem quase instintivamente no progresso" e no "porvir", e cada vez mais carecem do respeito pela idade, já se acusa em tudo isso a origem não-nobre dessas "idéias"
O que faz uma moral dos dominantes parecer mais estranha e penosa para o gosto atual, no entanto, é o rigor do seu princípio básico de que apenas frente aos iguais existem deveres; de que frente aos seres de categoria inferior, a tudo estranho-alheio, pode-se agir ao bel-prazer ou como quiser o coração", e em todo caso "além do bem e do mal": aqui pode entrar a compaixão, e coisas do gênero. A capacidade e o dever da longa gratidão e da longa vingança - as duas somente com os iguais -, a finura na retribuição, o refinamento no conceito de amizade, de uma certa necessidade de ter inimigos (como canais de escoamento, por assim dizer, para os afetos de inveja, agressividade, petulância - no fundo, para poder ser bem amigo): todas essas são características da moral nobre, que, como foi indicado, não é a moral das "idéias modernas", sendo hoje difícil percebê-la, portanto, e também desenterrá-la e descobri-la.
É diferente com o segundo tipo de moral, a moral dos escravos. Supondo que os violentados, oprimidos, prisioneiros, sofredores, inseguros e cansados de si moralizem: o que terão em comum suas valorações morais? Provavelmente uma suspeita pessimista face a toda a situação do homem achará expressão, talvez uma condenação do homem e da sua situação. O olhar do escravo não é favorável às virtudes do poderoso: é cético e desconfiado, tem finura na desconfiança frente a tudo "bom" que é honrado por ele gostaria de convencer-se de que nele a própria felicidade não é genuína.
Inversamente, as propriedades que servem para aliviar a existência dos que sofrem são postas em relevo e inundadas de luz: a compaixão, a mão solícita e afável, o coração cálido, a paciência, a diligência, a humildade, a amabilidade recebem todas as honras - pois são as propriedades mais úteis no caso, e praticamente todos os únicos meios de suportar a pressão da existência.
A moral dos escravos é essencialmente uma moral de utilidade. Aqui está o foco de origem da famosa oposição "bom" e "mau" - no que é mau se sente poder e periculosidade, uma certa terribilidade, sutileza e força que não permite o desprezo. Logo segundo a moral dos escravos o "mau" inspira medo; segundo a moral dos senhores e precisamente o "bom" que desperta e quer despertar medo, enquanto o homem "ruim" é sentido como desprezível. A opressão chega ao auge quando, de modo conseqüente à moral dos escravos, um leve aro de menosprezo envolve também o "bom" dessa moral - ele pode ser ligeiro e benévolo porque em todo caso o bom tem de ser, no modo de pensar escravo, um homem inofensivo: é de boa índole, fácil de enganar, talvez um pouco estúpido, ou seja, un bonhomme [um bom homem]. Onde quer que a moral dos escravos se torne preponderante, a linguagem tende a aproximar as palavras "bom" e "estúpido".
Uma última diferença básica: o anseio de liberdade, o instinto para a felicidade e as sutilezas do sentimento de liberdade pertencem tão necessariamente à moral e moralidade escrava quanto a arte e entusiasmo da veneração, da dedicação, sintoma regular do modo aristocrático de pensamento e valoração.
Com isso, pode-se compreender por que o amor-paixão - nossa especialidade européia - deve absolutamente ter uma procedência nobre: é notório que ele foi invenção dos cavaleiros-poetas provençais, aqueles magníficos, inventivos homens do gai saber [gaia ciência], aos quais a Europa tanto deve, se não deve ela mesma." (NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal, § 260. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p, 172-5)
, representados pelas duas morais: a nobre (ou dos senhores) e a escrava."Numa perambulação pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, que até agora dominaram e continuam dominando na terra, encontrei certos traços que regularmente retornam juntos e ligados entre si: até que finalmente se revelaram dois tipos básicos, e uma diferença fundamental sobressaiu. Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos; acrescento de imediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem também tentativas de mediação entre as duas morais, e, com ainda maior freqüência, confusão das mesmas e incompreensão mútua, por vezes inclusive dura coexistência até mesmo num homem, no interior de uma só alma.
As diferenciações morais de valor se originaram ou dentro de uma espécie dominante, que se tornou agradavelmente cônscia da sua diferença em relação à dominada, ou entre os dominados, os escravos e dependentes de qualquer grau. No primeiro caso, quando os dominantes determinam o conceito de "bom", são os estados de alma elevados e orgulhosos que são considerados distintivos e determinantes da hierarquia. O homem nobre afasta de si os seres nos quais se exprime o contrário desses estados de elevação e orgulho: ele os despreza. Note-se que, nessa primeira espécie de moral, a oposição "bom" e "ruim" significa tanto quanto "nobre" e "desprezível"; a oposição "bom" e "mau" tem outra origem.
Despreza-se o covarde, o medroso, o mesquinho, o que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e, sobretudo, o mentiroso - é crença básica de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso. "Nós , verdadeiros" - assim se denominavam os nobres da Grécia antiga.
É óbvio que as designações morais de valor, em toda parte, foram aplicadas primeiro a homens, e somente depois, de forma derivada, a ações: por isso é um grande equívoco, quando historiadores da moral partem de questões como "por que foi louvada a ação compassiva?". O homem de espécie nobre se sente como aquele que determina valores, ele não tem necessidade de ser abonado, ele julga: "o que me é prejudicial é prejudicial em si", sabe-se como o único que empresta honra às coisas, que cria valores. Tudo o que conhece de si, ele honra: uma semelhante moral é glorificação de si.
Em primeiro plano está a sensação de plenitude, de poder que quer elevada, a consciência de uma riqueza que gostaria de ceder e presentear - também o homem nobre ajuda o infeliz, mas não ou quase não por compaixão, antes por um ímpeto gerado pela abundância de poder.
O homem nobre honra em si o poderoso, e o que tem poder sobre si mesmo, que entende de falar e calar, que com prazer exerce rigor e dureza consigo e venera tudo que seja rigoroso e duro.
"Um coração duro me colocou Wotan no peito", diz uma velha saga escandinava: uma justa expressão poética da alma de um orgulhoso viking. Uma tal espécie de homem se orgulha justamente de não ser feito para a compaixão: daí o herói da saga acrescentar, em tom de aviso, que "quem quando jovem não tem o coração duro, jamais o terá". Os nobres e bravos que assim pensam estão longe da moral que vê o sinal distintivo do que é moral na compaixão, na ação altruísta ou no desintéressement [desinteresse]; a fé em si mesmo, o orgulho de si mesmo, uma radical hostilidade e ironia face à "abnegação" pertencem tão claramente à moral nobre quanto um leve desprezo e cuidado ante as simpatias e o "coração quente".
São os poderosos que entendem de venerar, esta é sua arte, o reino de sua invenção. A profunda reverência pela idade e pela origem - todo o direito se baseia nessa dupla reverência -, a fé e o preconceito em favor dos ancestrais e contra os vindouros são algo típico da moral dos poderosos; e quando, inversamente, os homens das "idéias modernas" crêem quase instintivamente no progresso" e no "porvir", e cada vez mais carecem do respeito pela idade, já se acusa em tudo isso a origem não-nobre dessas "idéias"
O que faz uma moral dos dominantes parecer mais estranha e penosa para o gosto atual, no entanto, é o rigor do seu princípio básico de que apenas frente aos iguais existem deveres; de que frente aos seres de categoria inferior, a tudo estranho-alheio, pode-se agir ao bel-prazer ou como quiser o coração", e em todo caso "além do bem e do mal": aqui pode entrar a compaixão, e coisas do gênero. A capacidade e o dever da longa gratidão e da longa vingança - as duas somente com os iguais -, a finura na retribuição, o refinamento no conceito de amizade, de uma certa necessidade de ter inimigos (como canais de escoamento, por assim dizer, para os afetos de inveja, agressividade, petulância - no fundo, para poder ser bem amigo): todas essas são características da moral nobre, que, como foi indicado, não é a moral das "idéias modernas", sendo hoje difícil percebê-la, portanto, e também desenterrá-la e descobri-la.
É diferente com o segundo tipo de moral, a moral dos escravos. Supondo que os violentados, oprimidos, prisioneiros, sofredores, inseguros e cansados de si moralizem: o que terão em comum suas valorações morais? Provavelmente uma suspeita pessimista face a toda a situação do homem achará expressão, talvez uma condenação do homem e da sua situação. O olhar do escravo não é favorável às virtudes do poderoso: é cético e desconfiado, tem finura na desconfiança frente a tudo "bom" que é honrado por ele gostaria de convencer-se de que nele a própria felicidade não é genuína.
Inversamente, as propriedades que servem para aliviar a existência dos que sofrem são postas em relevo e inundadas de luz: a compaixão, a mão solícita e afável, o coração cálido, a paciência, a diligência, a humildade, a amabilidade recebem todas as honras - pois são as propriedades mais úteis no caso, e praticamente todos os únicos meios de suportar a pressão da existência.
A moral dos escravos é essencialmente uma moral de utilidade. Aqui está o foco de origem da famosa oposição "bom" e "mau" - no que é mau se sente poder e periculosidade, uma certa terribilidade, sutileza e força que não permite o desprezo. Logo segundo a moral dos escravos o "mau" inspira medo; segundo a moral dos senhores e precisamente o "bom" que desperta e quer despertar medo, enquanto o homem "ruim" é sentido como desprezível. A opressão chega ao auge quando, de modo conseqüente à moral dos escravos, um leve aro de menosprezo envolve também o "bom" dessa moral - ele pode ser ligeiro e benévolo porque em todo caso o bom tem de ser, no modo de pensar escravo, um homem inofensivo: é de boa índole, fácil de enganar, talvez um pouco estúpido, ou seja, un bonhomme [um bom homem]. Onde quer que a moral dos escravos se torne preponderante, a linguagem tende a aproximar as palavras "bom" e "estúpido".
Uma última diferença básica: o anseio de liberdade, o instinto para a felicidade e as sutilezas do sentimento de liberdade pertencem tão necessariamente à moral e moralidade escrava quanto a arte e entusiasmo da veneração, da dedicação, sintoma regular do modo aristocrático de pensamento e valoração.
Com isso, pode-se compreender por que o amor-paixão - nossa especialidade européia - deve absolutamente ter uma procedência nobre: é notório que ele foi invenção dos cavaleiros-poetas provençais, aqueles magníficos, inventivos homens do gai saber [gaia ciência], aos quais a Europa tanto deve, se não deve ela mesma." (NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal, § 260. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p, 172-5)
Fonte: Minha Biblioteca Pessoal
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