Por Pedro J. Bondaczuk
Os poetas dizem, do alto da sua sensibilidade, que “os olhos são as janelas da alma”. Embora pareça mero clichê, trata-se, no entanto, de feliz metáfora, de óbvia verdade da qual nem sempre nos conscientizamos. São estes instrumentos, sempre aos pares, que nos permitem conhecer o belo e o feio. São eles que informam o cérebro sobre as formas, as cores, as tonalidades, o tamanho, a profundidade etc.etc.etc. de tudo e de todos. São, pois, as mais úteis ferramentas do conhecimento. Alimentam o cérebro de informações, fornecem à razão a matéria-prima para a tomada da consciência do mundo e das decisões que nos garantam a sobrevivência e fomentam a geração de idéias. Não é nenhum exagero, pois, afirmar que os olhos são “janelas para a vida”.
Este preâmbulo vem a propósito de memorável sermão do Padre Antônio Vieira (como, ademais, todos os de sua lavra o são), que tenho, agora, à minha frente e sobre cujo conteúdo convido o paciente leitor a refletir comigo.
O incomparável pregador – e um dos maiores estilistas, se não o maior, da língua portuguesa – inicia a prédica em questão com as seguintes exclamações: “Notável criatura são os olhos! Admirável instrumento da Natureza; prodigioso artifício da Providência!”. Não se limita, porém, a louvar a utilidade desse nobre sentido. De imediato, aponta, não só suas vantagens, mas, também, os perigos a que ele nos expõe. Por que essa admiração, esclarecido leitor?
Creio que o pregador tira, a seguir, suas dúvidas (ou as aumenta, sei lá) ao acentuar: “Eles (os olhos) são a primeira origem da culpa; eles a primeira fonte da graça. São os olhos duas víboras, metidas em duas covas, e que a tentação pôs o veneno e a contrição a triaga”. Triaga, para que você entenda a metáfora, é uma espécie de xarope medicamentoso, muito utilizado nos tempos que Vieira viveu. Não ficou convencido ainda? Reproduzo mais um trecho do sermão: “São duas setas (os olhos) com que o Demônio se arma para nos ferir e perder; e são dois escudos com que Deus depois de feridos nos repara para nos salvar”.
Qual a razão do padre entender que os olhos são a primeira origem de culpa? Simples! Porque é através deles que nos sentimos tentados a fazer o que não devemos (como cobiçar uma bela mulher que não possamos, por razões morais, conquistar, por exemplo. Ou a desejar tomar posse, indevidamente, do que nos agrade, mas não nos pertença. Ou a cometer tantas e tantas outras violações da moral). Os olhos, o leitor há de convir, são a principal porta de entrada de todas as tentações que nos vão na alma.
São, porém, igualmente, fontes primitivas da graça. Colocam-nos face à beleza, à grandeza e à transcendência. São a “triaga” salvadora para nos prevenir da corrupção e do erro. Vieira, todavia, vislumbra outra função para essas “janelas da vida”. Lembra: “Todos os sentidos do homem têm um só ofício; só os olhos têm dois. O ouvido ouve, o gosto gosta, o olfato cheira, o tato apalpa, só os olhos têm dois ofícios: ver e chorar”.
As lágrimas! Quão misteriosas (e benignas) são! Frutos de profundas emoções, quer positivas, quer negativas (afinal, choramos tanto de alegria, quanto de tristeza), são uma espécie de válvula de escape de extremas tensões provocadas pelos sentimentos, protegendo o sistema nervoso e evitando colapso completo de todo o organismo. São, portanto, um bem, em qualquer das situações (quer nas incontidas alegrias, quer nas extremas tristezas). Mas Vieira ainda não se contenta. Torna a questionar.
Indaga: “Ninguém haverá (se tem entendimento) que não deseje saber: por que ajuntou a natureza no mesmo instrumento as lágrimas e a vista; e por que uniu a mesma potência o ofício de chorar, e o de ver?”. Sim, por que esse capricho? Por que as lágrimas, por exemplo, não são causadas pelo tato, ou pelo paladar, ou pela audição ou pelo olfato? A razão é óbvia, mas teimamos, em nossa mania de complicar tudo, em ignorar exatamente o que é mais evidente e lógico.
Vieira comenta, com sua irretorquível lógica: “O ver é a ação mais alegre; o chorar a mais triste. Sem ver, como dizia Tobias, não há gosto, porque o sabor de todos os gostos é ver; pelo contrário, o chorar é o estilado da dor, o sangue da alma, a tinta do coração, o fel da vida, o líquido do sentimento”. As metáforas do pregador, como se observa, são de rara beleza, mas ele ainda não respondeu à questão que propôs.
Contudo, esse sábio orador nunca deixou seus fiéis ouvintes na mão. Por isso, nos dá a resposta à própria indagação (e à dos que “têm entendimento”) nestas palavras claras, incontestáveis e de enorme sapiência: “Por que ajuntou logo a natureza nos mesmos olhos dois efeitos tão contrários, ver e chorar? A razão e a experiência é esta. Ajuntou a natureza a vista e as lágrimas porque as lágrimas são a conseqüência da vista; ajuntou a Providência o chorar com o ver, porque o ver é a causa do chorar”. E conclui: “Sabeis por que choram os olhos? Porque vêem”. Simples assim! E é preciso explicar mais alguma coisa?!
Pedro J. Bondaczuk é jornalista e escritor, autor do livro “Por Uma Nova Utopia”
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