A Imprensa e o Judiciário
1. Nas relações Poder Judiciário e Imprensa sobreleva, de início, a importância do Judiciário e da Imprensa no contexto político-social.
O primeiro, pela missão que desempenha como Poder e como instituição na efetivação dos direitos, na preservação da democracia, no respeito à ordem jurídica, na garantia das liberdades e no cumprimento da vontade popular assentada na lei maior que é a Constituição.
A Imprensa, por sua vez, tornou-se indispensável à convivência social, com atividades múltiplas, que abrangem noticiário, entretenimento, lazer, informação, cultura, ciência, arte, educação e tecnologia, influindo no comportamento da sociedade, no consumo, no vestuário, na alimentação, na linguagem, no vernáculo, na ética, na política etc. Representa, em síntese, o mais poderoso instrumento de influência na sociedade dos nossos dias. A propósito, recentemente o Prof. Calmon de Passos assinalou(“Revista de Processo”, 73/98, e segs):
“O Século XX, particularmente, experimentaria, no particular, verdadeira revolução. Nele se consolidou o que vinha paulatinamente se revelando - a progressiva transformação de um público pensador de cultura e formador de opinião em um público consumidor de cultura, deslocando-se a formação da opinião pública para os detentores dos meios de comunicação de massa.
Nenhum outro tipo de empresa conseguiu somar tanto poder político ao seu poder econômico quanto as empresas da área de comunicação. Por isso mesmo elas se fizeram mais políticas que econômicas, ou melhor dizendo, as que mais eficientemente utilizaram o poder político em favor de seu poder econômico. A imprensa, máxime com sua expansão além da imprensa escrita, se fez um poder e um poder que, por não estar formalmente institucionalizado, escapa de controles sociais, inexistindo controles políticos eficazes. Pode-se subjugar a imprensa, submetê-la ao poder político, estatizando-a ou censurando-a prévia e drasticamente, mas não se sabe como controlá-la eficientemente, quando liberada.
Umberto Eco, com a sua costumeira acuidade, adverte que, não muito tempo atrás, se alguém desejasse empolgar o poder político num país, suficiente seria controlar o exército e a polícia. Hoje, só em países subdesenvolvidos generais facistas podem dar golpes de Estado, usando seus tanques. Basta, porém, que um país tenha adquirido um certo nível de industrialização para que o panorama mude completamente. E exemplifica. No dia seguinte à queda de Kruschev, os diretores do Pravda e do Izvestia e das cadeias radiotelevisivas foram substituídos; prescindiu-se de qualquer movimentação de tropas. E conclui: “Hoje, um país pertence a quem controla os meios de comunicação”. E acrescenta: “Como sugeriu o Prof. Mc. Luhan, a informação não é mais um instrumento para produzir bens econômicos; ela própria tornou-se o principal dos bens. A informação transformou-se em indústria pesada. Quando o poder econômico passa de quem tem em mãos os meios de produção para os que detêm os meios de informação, que podem determinar o controle dos meios de produção, também o problema da alienação muda de significado. Diante da sombra de uma rede de comunicação que se estende para abraçar o universo, cada cidadão do mundo torna-se membro de um novo proletariado”. E incisivo: “os meios de massa não veiculam uma ideologia: são, eles próprios, uma ideologia”.
2. Há, por outro lado, visível identificação entre o Judiciário e a Imprensa.
Representam ambos valores democráticos, refletidos especialmente na liberdade de manifestação e nas garantias da cidadania. E sofre, cada um a seu modo, as restrições dos regimes totalitários.
Ademais, convivem ambos, presentemente, com o perfil de massa da sociedade dos nossos dias, ao qual procuram adaptar-se. A Imprensa, diversificando-se. O Judiciário, buscando novos mecanismos e novas técnicas de solução de conflitos, ciente de que o seu modelo liberal-individualista não mais responde aos reclamos dos tempos atuais.
Outrossim, nítida é a busca do aprimoramento que ambos perseguem: a Imprensa, debatendo sua ética e o seu poder de influência, adotando inclusive a figura do ombudsman; o Judiciário, com a criação de escolas judiciais, cursos de formação e aperfeiçoamento do seu pessoal e, ainda, com o debate em torno da adoção de um órgão de controle administrativo-disciplinar e outro de reflexão e planejamento permanentes.
3. Notórias, de outro lado, são as suas deficiências principais.
Assim, em relação ao Judiciário, a impunidade, o formalismo exacerbado, o nepotismo, a morosidade, o corporativismo, muito embora contra esses vícios lute o próprio Judiciário em sua parcela mais expressiva e também se saiba que a correção das falhas exige investimento com recursos materiais e humanos e uma legislação adequada, criativa e moderna.
Em relação à Imprensa, as falhas são sobretudo decorrentes de abuso e irresponsabilidade. Para exemplificar, tomo de empréstimo estudo realizado em Pernambuco, sob a coordenação da Universidade Católica e do Des. Nildo Nery dos Santos. Pesquisa feita com critério científico, tomando por base as programações da televisão em duzentas e sessenta e quatro(264) horas, no período de três(3) semanas, no ano de 1979(hoje, certamente os dados seriam ainda mais alarmantes), registrou(publicação do Tribunal de Justiça de Pernambuco):
“Cenas de agressão: 3.484, sendo que 1.203 de modo verbal, 753 com luta corporal, 620 por meio de arma de fogo e 636 com utilização de outros tipos de arma. Decorreram dessas agressões, 608 lesões, 573 mortes, 363 aprisionamentos, 258 torturas, 234 ocorrência de direção perigosa e 316 chantagens.
Foram anotados no dito período, a prática de 501 crimes de diversa natureza, dos quais 149 assaltos, detectando-se como motivação delituosa, 272 por dinheiro, 103 por desvio sexual, 93 por abuso alcoólico e 33 pelo uso indevido de tóxicos. Provocaram ainda os ditos fatores, 70 cenas de prostituição, 19 de homossexualismo, 19 suicídios e mais 110 casos de direção perigosa.
O desajuste familiar em novelas e filmes de TV surgiu nas três semanas 543 vezes, com 60 casos de infidelidade masculina e coincidentemente com igual número de infidelidade feminina. Foram registradas 233 brigas de casal, 157 brigas entre pais e filhos, 35 brigas entre irmãs. Em conseqüência destes desajustes, ocorreram 73 separações de casal, 35 roubos, 42 mulheres ingressaram na prostituição, 07 tornaram-se viciadas em drogas, 54 passaram a abusar do álcool, 12 tentaram ou consumaram o suicídio, e foram registradas por essa motivação, 20 lesões.
As cenas de erotismo anotadas foram de 874, das quais 89 foram apresentando atos de conjunção carnal, 320 de exibição do corpo feminino, 374 modos sensuais, 38 gestos imorais e foram proferidas 53 pornografias. O crime de estupro registrou-se em 6 ocasiões.
Os sujeitos ativos da violência foram 1878 homens e 588 mulheres; e como sujeito passivo - 1716 homens e 506 mulheres, e 116 crianças apareceram como personagens da violência.
Assinale-se que em 95 programas de gênero para crianças, somente 3 não continham episódios violentos”.
4. Freqüente e generalizado, não se pode negar, é o descontentamento do Judiciário com o noticiário da Imprensa.
Em primeiro lugar, pelo desconhecimento de noções elementares por quem dá a notícia, a começar por confundir o Judiciário com a Polícia, com o Ministério Público, com a Defensoria, com os Ministérios da Justiça e do Trabalho, englobando na expressão “Justiça” todos esses segmentos e passando à sociedade uma imagem distorcida, publicando manchetes apelatórias do tipo “Supremo dá de goleada no governo”, “Polícia prende e Judiciário solta”, “Os juízes não querem o controle do Judiciário” etc. Publicando meias verdades e deixando ao relento temas que efetivametne interessariam a todos, até mesmo certas mazelas, como a balbúrdia das remunerações e a anomalia dos classistas da Justiça do Trabalho.
Em segundo lugar, pela carência de boas entrevistas com pessoas qualificadas do Judiciário e pelo descaso com o que nele ocorre, contribuindo para passar à sociedade uma imagem falsa do Poder, sem noticiar decisões que em muito interessariam à comunidade, como, para exemplificar, as relacionadas ao Direito de Família, especialmente em uma fase de tantas mutações nesse campo.
É de convir-se, todavia, que o Judiciário também contribui marcadamente para esse quadro, não se equipando devidamente com assessorias eficientes, não se utilizando de marketing e da mídia, como recentemente enfatizaram o publicitário Luiz Salles e o jornalista-jurista Wálter Ceneviva(“O Judiciário e a Constituição”, Saraiva, 1993).
Não menos certo também é que, além da estrutura pesada, conservadora e hermética do Judiciário, nós magistrados, não raras vezes, contribuímos para o distanciamento em relação à Imprensa, quer por timidez excessiva, quer por prepotência ou despreparo, quer até mesmo pela retórica gongórica da linguagem judiciária, de que são exemplos expressões como: “inacolhe-se a exordial ab ovo”; “desatende-se o reclamo irresignatório”; “a irresignação lhe resultou inexitosa”; “um quadro adstrito ao gizamento medular destinado a esse colendo areópago” etc.
5. Ao finalizar, e a título de contribuição, ficam as seguintes reflexões:
a - o conhecimento da atividade do Judiciário é direito do cidadão. Sendo os magistrados prestadores de serviço público, imprescindível se faz que essa atividade seja a mais transparente possível;
b - impõe-se, para o aprimoramento da democracia no País, que haja uma maior aproximação entre Judiciário e Imprensa, sendo esta veículo da atuação e da postura dos diversos segmentos sociais, mostrando como atua o Judiciário, qual a sua competência, sua estrutura, seu alcance como Poder, suas deficiências, seus abusos reais;
c - fundamental, destarte, que sejam superadas as dificuldades apontadas, e outras que existirem, tornando-se o Judiciário mais acessível à divulgação e, via de conseqüência, ao público; esmerando-se a Imprensa, por seu turno, em aperfeiçoar o seu sistema de divulgação, com inteira liberdade mas sem as distorções, os abusos e as omissões que o estágio atual está a demonstrar;
d - o Estado democrático de Direito não se contenta mais com uma ação passiva. O Judiciário não mais é visto como mero Poder eqüidistante, mas como efetivo participante dos destinos da Nação e responsável pelo bem comum. Os direitos fundamentais sociais, ao contrário dos direitos fundamentais clássicos, exigem a atuação do Estado, proibindo-lhe a omissão. Essa nova postura repudia as normas constitucionais como meros preceitos programáticos, vendo-as sempre dotadas de eficácia em temas como dignidade humana, redução das desigualdades sociais, erradicação da miséria e da marginalização, valorização do trabalho e da livre iniciativa, defesa do meio ambiente e construção de uma nova sociedade mais livre, justa e solidária;
e - cada vez mais, e o próximo século se encaminha para essa demonstração, o Judiciário terá participação maior e mais efetiva na sociedade, especialmente para conter os excessos do Poder dominante e melhor resguardar os direitos da cidadania. Nesse quadro, igualmente relevante será o papel a ser desenvolvido pela Imprensa. Daí a necessidade de ambos se aparelharem convenientemente, corrigindo suas atuais e múltiplas deficiências, aprimorando seus mecanismos e buscando diretrizes que melhor atendam aos anseios de uma sociedade livre, justa, solidária e responsável.
Autor : Salvio de Figueiredo Teixeira
Advogada
OAB / RS / Brasil
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